Morre Niède Guidon, arqueóloga que mudou a história do povoamento das Américas
A arqueóloga Niède Guidon, figura central na arqueologia brasileira e mundial, faleceu aos 92 anos em São Raimundo Nonato, no Piauí. Seu nome está diretamente ligado ao Parque Nacional Serra da Capivara, local que ela ajudou a transformar em um dos sítios arqueológicos mais relevantes do planeta. Foi a partir de suas escavações e análises que surgiram evidências que desafiaram a visão predominante sobre a chegada dos primeiros humanos às Américas.
Teorias transformadas por descobertas no sertão
Ao longo de décadas de trabalho no semiárido piauiense, Guidon apresentou dados que contrariavam a teoria amplamente aceita de que os povos originários teriam cruzado o Estreito de Bering há cerca de 13 mil anos. Com base em fósseis, artefatos e pinturas rupestres encontradas no Boqueirão da Pedra Furada e em outros sítios, ela propôs que seres humanos já viviam naquela região há pelo menos 25 mil anos — e possivelmente há mais de 100 mil, embora essa hipótese ainda gere debates.
Parte da comunidade científica já aceita ocupações humanas anteriores às estimativas tradicionais, embora a hipótese de Guidon sobre uma ocupação tão antiga continue a ser alvo de ceticismo. Mesmo assim, seus estudos abriram caminho para novas investigações e reposicionaram o Brasil no mapa das grandes descobertas arqueológicas.
Da USP à Sorbonne: uma trajetória de coragem e ciência

Nascida em 1933 na cidade de Jaú, interior de São Paulo, Niède formou-se em História na Universidade de São Paulo e concluiu o doutorado em arqueologia na prestigiada Sorbonne, em Paris. Sua relação com o Piauí começou de forma indireta, por meio de relatos sobre pinturas rupestres semelhantes às da região de Lagoa Santa (MG). Em 1963, tentou ir de carro até o estado nordestino, mas foi impedida pelas chuvas. Somente anos depois concretizaria sua ida definitiva à região.
Entre 1964 e 1973, já morando novamente na França, organizou missões de pesquisa para o sul do Piauí, onde começaria seu trabalho pioneiro. Essas viagens, patrocinadas por instituições europeias, foram o início de uma verdadeira revolução no entendimento do passado americano.
Teorias tradicionais sob nova luz
Durante as décadas seguintes, Guidon identificou evidências de fogueiras, instrumentos líticos e pinturas que datavam de períodos muito anteriores aos aceitos pela arqueologia dominante. Em 1986, publicou na revista Nature um estudo com datações de 32 mil anos para ocupações humanas na Serra da Capivara. Ela chegou a considerar a hipótese de que os primeiros habitantes poderiam ter vindo da África por rotas marítimas através do Atlântico Sul — um ponto de vista que ainda encontra resistência entre pesquisadores.
A própria Niède, no início, questionava a veracidade das primeiras datações. No entanto, a consistência dos achados e o rigor com que eram analisados a encorajaram a sustentar suas conclusões, mesmo diante da pressão de acadêmicos, especialmente nos Estados Unidos, onde a teoria do Estreito de Bering segue dominante.
Mulher, cientista e pioneira no sertão
Além de lidar com resistências acadêmicas, Niède enfrentou as barreiras impostas a mulheres cientistas em uma época dominada por homens nas universidades e nos centros de pesquisa. Para a pesquisadora Priscilla Bacalhau, essa condição tornou sua jornada ainda mais difícil. Mesmo assim, Guidon persistiu com convicção e comprometimento científico, abrindo espaço para novas interpretações sobre o passado humano.
Sua atuação na Serra da Capivara ultrapassou a arqueologia: foi também um trabalho de desenvolvimento social, cultural e ambiental. Ela compreendia que preservar o patrimônio exigia, antes de tudo, garantir condições de vida dignas para as comunidades locais.
Parque Nacional e patrimônio mundial da humanidade
Em 1979, seus esforços resultaram na criação oficial do Parque Nacional da Serra da Capivara, reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade em 1991. Para estruturar e coordenar as pesquisas, Guidon criou, em 1980, a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), entidade que até hoje gerencia o conhecimento produzido na região.
Ela sempre defendeu que não bastava preservar os sítios arqueológicos: era necessário incluir as pessoas da região no projeto. Investiu em formação de profissionais locais, promoveu educação patrimonial e defendeu políticas públicas para o semiárido. “Não se protege a memória de um povo com fome”, dizia, em referência à urgência de combater a pobreza como forma de garantir a conservação do território.
Uma vida dedicada a proteger passado, presente e futuro
Niède Guidon viveu seu projeto de vida com intensidade. Além da ciência, dedicou-se à preservação cultural e ambiental do sertão nordestino. A museóloga Maria Ignez Mantovani, ao comentar seu legado, destacou o “olhar grandioso” da arqueóloga. “Ela enxergava além das pedras e das datas. Enxergava o que era preciso fazer pelas pessoas”, afirmou.
Sua visão integradora deixou marcas profundas na arqueologia, na educação e na vida de milhares de moradores de São Raimundo Nonato e arredores. A cidade, que antes era uma das regiões mais esquecidas do país, tornou-se referência internacional em pesquisa arqueológica e modelo de desenvolvimento sustentável.