Coluna | Quando tudo vira diagnóstico e as telas viram terapia

Coluna Quando tudo vira diagnóstico e as telas viram terapia
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A epidemia dos autodiagnósticos nas redes sociais

Burnout, TDAH, autismo, ansiedade, depressão… Diagnósticos sérios, profundos e complexos que vêm sendo, perigosamente, romantizados nas redes sociais. Em vídeos curtos de 30 segundos, pessoas se reconhecem em dois ou três sintomas genéricos e, sem nenhuma avaliação profissional, já se colocam numa condição clínica. De forma quase automática, carregam esses rótulos como explicação definitiva para suas dores emocionais.

Esta epidemia de autodiagnósticos tem crescido especialmente entre os adolescentes, os chamados nativos digitais, que já nasceram imersos em um mundo de estímulos constantes e excesso de telas. Mas o problema vai além dessa geração: um número cada vez maior de idosos também tem apresentado quadros de ansiedade, fobia social e até nomofobia, que é o medo irracional de ficar longe do celular.

O cenário é alarmante

A vida mediada por telas e seus efeitos ocultos

Estamos trabalhando com telas, estudando com telas, relaxando com telas, buscando espiritualidade por telas. A mesma ferramenta que nos conecta, informa e distrai também sobrecarrega, aliena e adoece.

Desde a pandemia da Covid-19, nos tornamos ainda mais digitais. No entanto, os números de doenças mentais dispararam independentemente da idade ou da geração.

Pesquisa da UFMG acende alerta para diferentes gerações

Um estudo recente da UFMG revelou que o uso excessivo de telas está diretamente associado ao aumento de casos de depressão, ansiedade, estresse e até queda no QI, especialmente entre crianças, adolescentes e idosos. A pesquisa ainda identificou uma presença inesperada da nomofobia em pessoas da terceira idade, um alerta sobre como o uso indiscriminado da tecnologia que afeta todas as faixas etárias.

Não é só o tempo, é também o conteúdo

O problema vai além da quantidade de tempo diante das telas. O conteúdo consumido, o tipo de relação que estabelecemos com os dispositivos e a falta de experiências reais fora do ambiente digital, contribuem para o agravamento dos sintomas.

Estamos doentes ou desorientados?

Tudo isso nos leva a uma pergunta urgente:

Estamos realmente vivendo uma epidemia de transtornos mentais, ou estamos adoecendo por excesso de informação, rótulos rápidos e uma vida mediada por telas?

Entrevista | “Estamos vivendo um período de intoxicação mental”

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Psicanalista Maíza Feledy

Com oito anos de experiência clínica e cinco como professora, a psicanalista Maiza Feledy nos ajuda a entender como o excesso de informação e o consumo digital descontrolado estão afetando a saúde mental das pessoas de diferentes idades. Ela alerta sobre os riscos dos autodiagnósticos, os impactos reais da hiperconexão e como a sociedade tem transformado sofrimento psíquico em moda nas redes sociais.

Excesso de informação e doenças emocionais

Como o excesso de informações tem afetado a mente das pessoas desde 2020?

“Infelizmente, as pessoas estão perdendo a conexão com os outros e transferindo esse vínculo para as telas e plataformas de streaming. Tudo que é excesso em nossas vidas vai causar um dano.”

Maiza explica que não é apenas a informação em si que adoece, mas o desequilíbrio emocional que esse consumo desenfreado gera.

“Nós temos hoje, talvez, a geração mais adoecida de todos os tempos. Parte desse adoecimento se deve exatamente por causa dos excessos.”

Ela cita que o Brasil é o país mais ansioso do mundo e que essa ansiedade desencadeia outros quadros como depressão, burnout, transtornos alimentares, problemas de autoestima e até distúrbios da sexualidade.

“Digo eu que o principal mal da nossa ansiedade… é a própria ansiedade.”

Intoxicação mental e vício em telas

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Você acredita que vivemos um tipo de extremismo digital?

Sim. Existe uma intoxicação mental absurda causada pelo excesso de informação. As pessoas passam horas rolando tela no trabalho, em casa, no ônibus. Mesmo quando não estão com o celular na mão, dão um jeito de se conectar.”

Segundo ela, o cérebro humano não tem tempo de processar tudo que recebe. O resultado é exaustão, irritabilidade, distúrbios do sono e esgotamento mental.

“Tenho pacientes que não conseguem ficar 50 minutos de consulta sem olhar o celular. Por isso, criei uma regra: o telefone fica em modo silencioso ou fora do consultório.”

Maiza relata que já atendeu pacientes diagnosticados com TAG (transtorno de ansiedade generalizada), síndrome do pânico e burnout, todos com início associado ao excesso de exposição digital.

“A pessoa entra em um ciclo de consumo de informação para fugir da própria realidade. Vai de uma série para outra, de um vídeo para outro, buscando algo que nem sabe exatamente o que é.”

Diagnósticos como tendência nas redes

TDAH, ansiedade, narcisismo… Por que tantos transtornos parecem estar “na moda”?

“Eu até disse isso em uma aula: está na moda ter alguns transtornos. Pode parecer desconfortável dizer isso, mas é uma verdade que precisa ser dita.”

Maiza explica que o TDAH, por exemplo, está sendo interpretado de forma equivocada por muitas pessoas, que se baseiam em vídeos curtos ou falas de influenciadores para se diagnosticarem.

“Uma pessoa cansada, com deficiência de vitamina B ou com estafa mental pode apresentar dificuldade de concentração, mas isso não significa que ela tenha TDAH.”

Segundo a psicanalista, o TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta as redes neuronais responsáveis por funções executivas, e não se resume a “ser distraído” ou “não prestar atenção”.

“Muitas pessoas só estão exaustas. O problema é que, em vez de buscar um diagnóstico sério, elas se apegam a rótulos que encontraram na internet.”

Redes sociais, comparação e frustração

Como a busca por validação nas redes influencia esse cenário de adoecimento?

“Hoje as redes impõem padrões. Sempre que alguém não se encaixa, cria um problema para si mesmo.”

Ela afirma que as pessoas estão tentando alcançar a vida dos influenciadores sem considerar as diferenças de trajetória, estrutura familiar e emocional. Isso gera frustração — e, segundo ela, a frustração adoece.

“A mídia não relata, mas a frustração gera números alarmantes de suicídio. As pessoas não estão preparadas para lidar com essas realidades que criaram.”

Como evitar cair nas armadilhas do autodiagnóstico?

“Busque ajuda profissional. Nós conhecemos nosso corpo, mas somos muito influenciáveis.”

Maiza alerta que muitas pessoas absorvem conteúdos com carga emocional e acabam se identificando com sintomas, que não necessariamente, indicam um transtorno real.

“Ter acesso à informação não significa ter acesso à solução.”

Ela recomenda cautela com vídeos e conteúdos que falam sobre transtornos sem base clínica e reforça que apenas uma avaliação profissional pode validar um diagnóstico de maneira responsável.

Conclusão

O que antes era motivo de cuidado e diagnóstico clínico, hoje virou um filtro com nome de transtorno nas redes sociais. A romantização da dor, o consumo desenfreado de conteúdos emocionais e a ânsia por pertencimento estão criando uma geração que se reconhece mais nos sintomas do que em sua própria história.

Como vimos na fala da psicanalista Maisa Feledy, o excesso de informação está adoecendo a mente de forma silenciosa, travestida de entretenimento e autoajuda. O problema não está em acessar conhecimento, mas em usá-lo como bengala para fugir do que realmente precisa ser enfrentado: a vida real, com suas frustrações, limites e demandas.

Enquanto o mundo digital oferecer diagnósticos rápidos, likes terapêuticos e identidades emocionais prontas, muitos continuarão presos em um ciclo de autodiagnóstico, comparação e esgotamento. E talvez o verdadeiro caminho de cura comece, justamente, quando temos coragem de fechar as abas, silenciar o feed e olhar para dentro sem rótulos, sem filtros, sem pressa.

A vida real é off-line

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Gabriel - diretor do Lagoa News

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